Julgamentos supostamente exemplares do Supremo na verdade são um duplo equívoco

stf - Flávio Chaves

Charge do Nani (Nanihumor.com)

Demétrio Magnoli
Folha

Antonio Tejero e Maurice Challe foram condenados a 15 anos de cárcere. Os três primeiros réus do 8 de janeiro receberam sentenças de 14 a 17 anos. O STF move-se pela bússola da justiça exemplar – ou seja, de uma justiça pré-moderna orientada pelo efeito público de suas decisões.

O oficial de polícia Tejero liderou a tentativa de golpe de Estado franquista na Espanha, em 1981. À frente de 150 policiais armados, tomou o Congresso e manteve os deputados como reféns durante 22 horas. O general Challe liderou um putsch contra o governo de Charles de Gaulle, em Argel, em 1961. Sob o seu comando, mil paraquedistas tomaram controle da cidade e conclamaram à rebelião militar na França metropolitana. Como compará-los aos bagrinhos estúpidos do 8/1?

EXAGEROS NÃO FUNCIONAM – Justiça exemplar foi procedimento típico de poderes fracos do passado que, incapazes de garantir um mínimo de ordem, emitiam penas bárbaras contra criminosos secundários com finalidade de dissuasão.

Os potenciais criminosos enfrentavam uma equação paradoxal: de um lado, baixo risco de captura; do outro, a certeza de uma sentença devastadora. No Sudão, sob o álibi da sharia (lei islâmica), furtos ainda são punidos pela amputação de mãos.

Justiça exemplar também foi instrumento de poderes engajados em cruzadas ideológicas. A inquisição queimava bruxas em praça pública para ensinar ao povo a origem do pecado e o valor da obediência à Igreja. Na província Aceh, Indonésia, sempre sob o álibi da sharia, acusadas de adultério ainda são açoitadas diante de multidões. O regime teocrático xiita do Irã executa, em público, ativistas que participaram da onda de protestos pelos direitos das mulheres. O STF não está em boa companhia.

PAVIO DE GOLPE –  O 8/1 foi uma tentativa frustrada de acender o pavio de um golpe de Estado. Os vândalos imbecis que depredaram os palácios precisam pagar por seus crimes. Mas os juízes supremos fogem à obrigação de caracterizar e descrever o lugar de diferentes indivíduos na trama golpista.

Quando condena soldados rasos a penas apropriadas a líderes insurrecionais, o STF viola a lei, convertendo a justiça criminal em discurso político. Sua mensagem explícita de rigor máximo contra o golpismo é um truque de ilusionismo.

Aécio Pereira, o primeiro condenado, sentenciado a 17 anos, estava imerso numa lagoa de delírios: acreditava na conspiração dos reptilianos e imaginava que Hillary Clinton é um holograma. O STF, que exercita a justiça exemplar, nem mesmo iniciou o julgamento dos financiadores e organizadores diretos do quebra-quebra de Brasília.

INVERSÃO TOTAL – As invasões do 8/1 inscrevem-se, como ápice ou anticlímax, na paisagem construída por Jair Bolsonaro durante os quatro anos de seu desgoverno. Como distribuir longas penas de prisão a figuras insignificantes sem ao menos indiciar como réu o autor intelectual do evento golpista?

“Ele foi pego como bode expiatório. Gritaram ‘vamos’ e todo mundo foi preso, mas quem gritou não foi”, reclama Johny, sindicalista e colega de trabalho de Aécio que repudia suas ideias e seus atos.

No mundo democrático, a justiça moderna fixa sua atenção no ofensor e nas circunstâncias da ofensa, utilizando a régua da proporcionalidade para definir sentenças.

INFANTILIZAÇÃO – A justiça exemplar, pelo contrário, ignora o réu, orientando-se pelo suposto efeito pedagógico das sentenças. Ela quer ensinar a sociedade – e, nesse passo, reduz os cidadãos à condição de crianças.

O Supremo equivoca-se duplamente ao conduzir julgamentos performáticos. Erra juridicamente quando se guia pelo objetivo político de produzir condenações exemplares. E erra politicamente pois suas penas desproporcionais oferecem ao bolsonarismo um argumento verossímil de perseguição judicial.

No fim, falta ao dever de colocar o chefe golpista no banco dos réus – e não por suas travessuras indecentes com joias sauditas.

6 thoughts on “Julgamentos supostamente exemplares do Supremo na verdade são um duplo equívoco

  1. Os dois espetáculos do PT perderam a sincronia e não mostrarão resultados.

    Externamente, apesar de descondenado e sem seu jurássico legado de sindicalista, queriam catapultá-lo a um impossível Prêmio Nobel, que não é comum para adoradores e apoiadores de regimes autoritários. Mesmíssimo impecilho para o outro projeto, torná-lo uma liderança mundial. Nesse caso específico, da adesão, como bagrinho, à política imperialista do “bem” da Rússia contra a Ucrânia. Aquela que mostrou, há décadas, o fracasso das diretrizes políticas, sociais e econômicas do jurássico lulismo.

    Assim, sobrou o espetáculo interno, que, embora dessincronizado, segue como uma criatura autônoma.

    Sem a anestesia do sucesso externo e sem o que apresentar de espetáculo na política interna, os próximos passos do Consórcio estão diante de dilemas preocupantes:

    – como tirar dos cofres deficitários bilhões pertencentes ao povo para devolver à burguesia cleptopatrimonialista e

    – como colocar na cadeia os tubarões com a mesma sanha justiceiro aplicada aos bagrinho.

    Ao fim, é possível deparamos com nem circo, nem picanha.

    Mas quem sabe o que faltou nisso tudo fora um avião do tipo Arábia Saudita?

  2. Um ponto no qual o ‘tosco’ bateu muito, foi na incapacidade de se auditar as urnas eletrônicas e alguns sistemas foram sugeridos.
    Será que nada será feito para estancar as dúvidas???!!!
    PS: Só não pode o cidadão ter que sair com um papel com o RX de seu voto, pois o Estado não garante nossa segurança e aí será um ‘prato cheio’ para os milicianos/traficantes/coronéis/o escambáu.

  3. Punitivistas e garantistas.
    Os meus canalhas são inocentes, os canalhas dos meus inimigos são os culpados.
    E assim o reducionismo vai calando os insatisfeitos.

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